
Audiência Pública discute o combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes
Em um país onde, segundo dados atualizados do Disque 100, somente em 2024, foram registrados 289.400 denúncias de violações envolvendo crianças e adolescentes, com destaque para as violências sexuais, o enfrentamento a esse tipo de crime segue como um dos maiores desafios da sociedade brasileira.
O Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, celebrado em 18 de maio, é um marco de resistência, memória e mobilização social. Criada em alusão ao caso Araceli, um crime brutal que chocou o país em 1973. A data ganha novo fôlego com a Campanha “Faça Bonito”, que em 2025 completa 25 anos de atuação contínua na promoção dos direitos das crianças e adolescentes.
Com esse pano de fundo, a Assembleia Legislativa de Sergipe (Alese) promoveu nessa quarta-feira (14), uma Audiência Pública Especial, reunindo representantes do poder público, organizações da sociedade civil, profissionais da assistência social, educação e saúde, além de ativistas dos direitos humanos.
A Audiência foi proposta e conduzida pela deputada e presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Alese, Linda Brasil (Psol), reconhecida por sua atuação em defesa das pautas sociais e da população vulnerável.
Em sua fala de abertura, a parlamentar destacou que combater a violência sexual infantojuvenil é um compromisso que exige ações articuladas entre todos os setores da sociedade.
Deputada Linda Brasil (Psol)
“A campanha ´Faça Bonito´ tem como principal objetivo o fortalecimento da rede de proteção às crianças e adolescentes em todo o país, incluindo o estado de Sergipe. A iniciativa foi proposta pelo Comitê Estadual de Enfrentamento à Violência Contra Crianças e Adolescentes, que sugeriu à Comissão de Direitos Humanos da Alese a realização desta Audiência para discutirmos essa temática, que tem se tornado ainda mais preocupante com o avanço das redes sociais sem a devida regulamentação. Nesse contexto, é urgente intensificar as ações de enfrentamento, sobretudo no que se refere ao abuso e à exploração sexual infantojuvenil, por meio de campanhas de conscientização que alcancem todos os espaços da sociedade. No âmbito da Comissão, temos buscado articular diálogos intersetoriais com outras pastas e segmentos, como as políticas voltadas para as mulheres, população negra e comunidade LGBTQIA+. Essa articulação com a sociedade civil organizada, comitês e instituições visa à construção de estratégias que ampliem e fortaleçam as políticas públicas voltadas à proteção integral de crianças, adolescentes e demais grupos em situação de vulnerabilidade”, afirmou a deputada.
Como debatedores, foram convidados a advogada, professora e Especialista em Políticas Públicas de Atendimento a Criança e ao Adolescente, Idoso e Pessoas com Deficiências, Sra. Glicia Salmeron; o professor titular da graduação, do mestrado e doutorado em Direitos Humanos da Universidade Tiradentes e Delegado de Polícia Civil do Estado de Sergipe, Sr. Ronaldo Marinho; a Presidente do Conselho Estadual dos Direitos de Crianças e Adolescentes, Especialista em Garantia dos Direitos e Política de Cuidados à Criança e ao Adolescente e Diretora-Presidente do Sindicato dos Psicólogos de Sergipe e da Federação Nacional dos Psicólogos, Sra. Daiana Santos Vieira Alves; o juiz auxiliar da Presidência do Tribunal de Justiça de Sergipe(TJSE) e ex-Secretário do Fórum Estadual de Juízes da Infância e da Juventude de Sergipe (FOEJI), Otávio Augusto Bastos Abdala ; a Promotora de Justiça, Coordenadora da infância Celeridade Processual, Diretora do Centro Operacional dos Direitos da Infância e Adolescência do MPSE, Talita Cunegundes Fernandes da Silva; A vereadora por Aracaju, Professora Sônia Meire
Glicia Salmeron considera 18 de Maio como data de mobilização
Especialista em Direito Público da Criança e do Adolescente, Glicia Salmeron
“O 18 de Maio não é uma data de celebração, mas sim de mobilização social. Ela ressalta que o momento deve servir para fortalecer o debate e renovar o compromisso com a proteção integral de crianças e adolescentes. Este ano, a lei que instituiu o 18 de Maio como Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes completa 25 anos. Assim como a campanha ‘Faça Bonito’. A proposta é que o Brasil, junto aos estados e municípios, assuma o compromisso de combater e, se possível, erradicar — essas formas de violência”, destacou.
Glicia lamenta que, mesmo após décadas de mobilização, os casos de violência, especialmente os que ocorrem dentro da própria família, ainda estejam em crescimento. “Infelizmente, o número de vítimas segue aumentando, principalmente nos casos de abuso intrafamiliar — justamente no espaço onde essas crianças deveriam estar protegidas e ter seus direitos garantidos.”
Ela também chamou atenção para o descumprimento dos princípios da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente. “Apesar de a legislação assegurar prioridade absoluta e proteção integral às crianças, essa garantia ainda não se materializa na prática. Muitas vivem em condições de extrema vulnerabilidade — não apenas social ou econômica, mas também expostas a ambientes que favorecem a violência.”
Por fim, Glicia alertou para o agravamento do problema nos últimos anos com o avanço da tecnologia. “Hoje, além do abuso físico e emocional, há também a violência que se multiplica no ambiente virtual. As redes sociais e a internet se tornaram novos espaços de ameaça para essas crianças, exigindo ações ainda mais urgentes e eficazes.”
Ronaldo Marinho fala da importância do enfrentamento
Delegado Ronaldo Marinho
“O enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes, precisa ser encarado como uma questão de responsabilidade pública. É fundamental que todos estejamos engajados nesse reconhecimento, porque só assim conseguiremos agir de forma eficaz. A mobilização da sociedade civil, em conjunto com a Assembleia Legislativa e o Governo do Estado, é extremamente positiva”, afirmou o delegado Ronaldo Marinho.
Segundo ele, a Polícia Civil tem observado um possível aumento nos registros de casos, o que, por um lado, pode indicar um avanço: “Isso demonstra que há uma maior confiança da sociedade em denunciar. As pessoas estão se sentindo mais seguras para buscar ajuda.”
O delegado também destacou a necessidade de criar uma rede de apoio estruturada. “Não basta apenas oferecer assistência médica. Precisamos de um acolhimento integral psicológico, social e emocional para atender as vítimas e suas famílias de forma digna e eficaz.”
Ronaldo Marinho chamou atenção para um dado alarmante: “O Brasil enfrenta um índice muito elevado de violência sexual contra crianças e adolescentes, especialmente meninas. E o mais preocupante é que, na maioria dos casos, os abusadores são pessoas próximas — estão dentro de casa, no convívio familiar.”
Ele reforça que as estatísticas confirmam essa realidade: “Os dados mostram que o lar ainda é o local onde mais ocorrem esses crimes, e os autores geralmente são indivíduos acima de qualquer suspeita, muitas vezes sem histórico de violência.”
Por fim, o delegado fez um alerta importante: “As crianças dão sinais. Elas demonstram sofrimento e desconforto. Por isso, é essencial que estejamos atentos, pois o agressor pode ser um parente, um vizinho, alguém próximo. Precisamos ouvir e proteger nossas crianças.”
Juiz Otávio Abdala, destaca papel do Judiciário
Juíz Aux. do TJSE, Otávio Abdala
O juiz auxiliar do Tribunal de Justiça de Sergipe, Otávio Abdala, destacou que o abuso infantil é uma questão extremamente complexa, e por isso, não comporta soluções simplistas. Para ele, é fundamental que diferentes instituições estejam envolvidas no debate e na construção de respostas eficazes.
“Abuso infantil é um tema delicado e multifacetado. Para problemas complexos, não existem soluções fáceis. Por isso, eventos como este são essenciais: reúnem diversos atores que atuam em todas as etapas dessa realidade lamentável, que infelizmente ainda ocorre com frequência. Juntos, podemos compreender melhor as diferentes dimensões do problema e pensar em soluções que realmente façam a diferença, especialmente na ponta, onde as vítimas estão”, afirmou.
O magistrado reforçou que o Poder Judiciário tem buscado contribuir de forma significativa no enfrentamento a esse tipo de crime. “A responsabilização penal tem um papel importante, pois funciona como um freio para novos casos. Mas, acima de tudo, é fundamental olhar para a vítima que é a principal figura em situações como essa.”
Abdala ressaltou que o Judiciário vem estruturando procedimentos específicos para lidar com casos de violência sexual infantil, com foco na proteção integral da criança ou adolescente. “O nosso objetivo é garantir que a vítima não seja revitimizada durante o processo. Toda a atuação é pensada para preservar seus direitos, sua saúde mental e emocional, considerando que estamos lidando com alguém em desenvolvimento, extremamente vulnerável.”
Segundo ele, o processo judicial, por si só, já é naturalmente difícil, e por isso deve ser conduzido com o máximo de sensibilidade. “O Judiciário tem o papel de tornar esse caminho o menos traumático possível, criando um ambiente acolhedor e respeitoso, sempre voltado à preservação da dignidade da vítima.”
Combate ao abuso infantil exige escuta qualificada, mobilização social e canais de denúncia eficazes
Durante as palestras e participações, foram apresentados dados alarmantes: a maioria dos casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes ocorre no ambiente doméstico ou no convívio familiar. Especialistas alertaram que muitas vítimas demoram anos para conseguir relatar as agressões sofridas, o que evidencia a necessidade de um olhar mais atento da sociedade e das instituições.
Os participantes destacaram a importância da escuta qualificada, do fortalecimento dos conselhos tutelares e da formação continuada dos profissionais que integram a rede de proteção. “É preciso que a criança seja ouvida com respeito e acolhimento, por pessoas preparadas para lidar com essa situação tão delicada”, reforçou uma das especialistas presentes.
A Campanha “Faça Bonito” foi amplamente discutida como uma importante ferramenta de mobilização social. Criada em 2000, a iniciativa tem como símbolo uma flor amarela — representação da fragilidade da infância e da urgência em protegê-la. Entre as ações promovidas estão atividades educativas em escolas, capacitações para agentes públicos, divulgação de canais de denúncia e eventos voltados à conscientização da população.
Outro ponto de destaque foi o papel do Disque 100, canal nacional de denúncias de violações de direitos humanos. De fácil acesso, o serviço permite o registro anônimo de denúncias e tem papel fundamental na interrupção dos ciclos de violência.
Grupo de danças do CEINFA
A audiência também contou com um momento cultural: uma apresentação artística realizada por crianças e adolescentes, alunas do grupo de danças do Centro de Integração da Família (Ceinfa), do bairro Olaria, em Aracaju. A performance “A mecânica do coração” emocionou o público e reforçou a importância da arte como ferramenta de expressão e superação.
Ao final, foi reiterada a importância da denúncia como primeiro passo para romper o ciclo da violência, garantir proteção às vítimas e assegurar a responsabilização dos agressores. A Assembleia Legislativa do Estado de Sergipe reafirma seu compromisso institucional com a formulação e o aprimoramento de políticas públicas, por meio da criação e ampliação de leis que fortaleçam a rede estadual de prevenção e enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes.
Fotos: Joel Luíz / Agência de Notícias Alese