Policiais militares que estavam em patrulha na região central de Guaratinguetá, no interior paulista, viram um homem que mostrou “atitude suspeita”. O nervosismo do jovem de 19 anos motivou abordagem e revista dos agentes, que encontraram apenas seu celular.

Eles pediram o código Imei, usado para rastrear a origem do telefone. Como ele não sabia, um dos agentes vasculhou o conteúdo e encontrou uma foto de arma numa conversa dele no WhatsApp com um amigo. Isso foi suficiente para que os agentes fossem até a casa do jovem para buscar a arma. Encontraram, segundo o boletim de ocorrência, nove pinos vazios, 5 gramas de crack em 10 pedras, 22 g de maconha em nove porções, e R$ 51. Ele foi preso em flagrante por tráfico de drogas.

Tanto para olhar o telefone quanto para entrar na casa, os policiais precisavam da permissão do jovem. Os agentes dizem ter recebido essa autorização, mas o advogado de defesa, Gustavo Moreno, afirma que isso aconteceu sob coação.

“Ele [o jovem] relatou que disseram ‘se você não falar que a droga é sua, sua mãe vai ser envolvida também’. Não há prova de que antes de ir até a casa dele, sem coação, ele tenha autorizado a entrada. O termo só foi assinado na delegacia”, diz o advogado.

As provas foram consideradas ilegais na primeira instância, mas o Ministério Público de São Paulo apelou. O caso, que começou com a abordagem em 2016, terminou em 29 de junho deste ano com a absolvição do jovem na 4ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.

O caso tem muito em comum com dados preliminares da pesquisa “Perfil do processado e produção de provas nas ações criminais por tráfico de drogas”, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

A maioria dos processados no país é de homens (87%) jovens (72%) negros (67%). Ainda, os dados apontam para uma incidência maior da repressão às drogas sobre quem tem baixa escolaridade (75%), com ensino fundamental incompleto, é desempregado ou autônomo (66%) e tem passagem anterior pelo sistema de Justiça (50%).

A pesquisa, que ainda está sendo revisada por pares, analisou 41.100 processos dos tribunais de justiça estaduais com decisão no primeiro semestre de 2019. Os dados preliminares foram apresentados em junho deste ano, durante encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública em Belém (PA).

Em apenas 13% dos processos há menção a facção criminosa. A equipe considerou o dado mesmo sem a comprovação, o que indica que o número pode estar superestimado.

No julgamento sobre a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal que está sendo feito no Supremo Tribunal Federal, um dos aspectos que está sendo analisado é a quantidade de maconha que uma pessoa pode carregar sem ser considerada traficante.

O ministro Alexandre de Moraes, assim como Luís Roberto Barroso, defendeu a criação de parâmetros quantitativos para caracterizar o usuário: posse de 25 a 60 gramas de maconha ou o cultivo de até seis plantas fêmeas.

Ainda, Moraes afirmou que, atualmente, estudos mostram que as autoridades policiais e a Justiça têm caracterizado pessoas mais jovens e menos escolarizadas como traficantes. O julgamento foi suspenso após o voto favorável do ministro à descriminalização, que deixou o placar em 4 a 0.

Apenas 20% dos processos analisados no estudo começam a partir da atuação de órgãos especializados em investigação, como a Polícia Civil. Os 80% restantes, portanto, são feitos por órgãos que não são responsáveis por investigações. Destes, a ampla maioria (77%) tem origem em uma ação da Polícia Militar —em 92% das vezes, uma prisão em flagrante, sendo metade delas na rua. Um terço dessas prisões é motivada por “atitude suspeita”.

Em quase um quinto dos casos (17%), não há apreensão de qualquer tipo de substância com os réus. A mediana de substâncias apreendidas é de 85 g de maconha e 24 g de cocaína.

Em 80% das ocorrências, o réu permanece em prisão preventiva durante o processo.

Foi o caso de uma ação em março de 2021 que acabou com um jovem preso em Franca, no interior de SP. Policiais militares abordaram o homem em uma praça da cidade porque ele mostrou nervosismo. A ação aconteceu a partir de uma suposta denúncia anônima de que usuários de crack de Patrocínio Paulista, outra cidade da região, estariam no local para traficar drogas.

Após a revista, os agentes não encontraram nada com o rapaz. Segundo a defesa, os agentes teriam coagido o jovem a confessar o tráfico e a posse, em casa, de maconha.

“E aí o gargalo: ele morava em Patrocínio Paulista, a 15 km de Franca. Os policiais levaram ele até a cidade e fizeram a prisão a partir de sete pés encontrados na casa e mais uma porção para consumo, sem outros indícios de tráfico”, afirma Gabriella Arima, advogada do rapaz e diretora da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas.

Mesmo sendo réu primário, com renda fixa e responsável pela filha menor de 12 anos, ele passou cerca de 10 meses preso, sem direito de recorrer em liberdade. Só foi absolvido em recurso no Superior Tribunal de Justiça, que considerou a abordagem ilegal. O homem foi solto perto do Natal de 2021.

Ainda, 93% dos processos têm apenas a menção a denúncias anônimas, enquanto 7% têm algum registro do autor da denúncia, como telefone, ou o conteúdo do relato.

Como no caso de Guaratinguetá, a entrada dos policiais na casa acontece, na maioria dos casos, sem mandado de busca e apreensão. Isso porque, em mais da metade dos processos (56%), não há registro sobre o consentimento ou a recusa para a entrada em domicílio. Em cerca de 12,9% dos casos, houve contestação do acusado sobre essa autorização.

A prevalência de homens negros, jovens, pobres e de baixa escolaridade evidencia um direcionamento do sistema de repressão às drogas contra grupos específicos na sociedade, de acordo com Daniely Reis, pesquisadora do Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais.

“A segurança pública vai se consolidando a partir de bases que vão se fixar na suposta periculosidade de um perfil da população. Esse suspeito vai ter cara, cor, classe social e território específico para ser encontrado”.

Esses fatores criam um perfilamento racial para o processado por tráfico, ou aquele que potencialmente pratica o crime de tráfico. É isso que está sendo discutido no Supremo Tribunal Federal”, diz a pesquisadora. Ela se refere a um caso atualmente em julgamento no tribunal que analisa um habeas corpus pedido pela Defensoria Pública de São Paulo que pede a anulação de provas obtidas em uma abordagem policial motivada por critério racial.

“O terror que se faz é muito mais uma construção política do que algo vinculado a grandes organizações criminosas. As pessoas presas como traficantes são só a ponta do iceberg”, diz Reis.

 

Foto: Divulgação

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